Nunca Chame a "Maldita"

Meu avô contava que seu pai, meu bisavô, vivia chamando a morte e, por fim, acabou morrendo lentamente, depois de uma geração muito mais recente de sua família. Sempre que o velho ranzinza se irritava com algo ou alguém, praguejava em voz alta, levantando as mãos para o céu:
- Vem logo me buscar, maldita!
A “maldita”, no caso, era a morte.

Eu me lembro que, quando meus pais me levavam em sua casa, no interior da cidade, meu bisavô obrigava todos os bisnetos a cumprimentá-lo com as mãos fechadas e unidas, como se estivéssemos rezando.

- Pede a benção, moleque – dizia para mim e para meus irmãos. E eu pedia.
Ele não era uma pessoa ruim, mas era do tipo durão e ora ou outra se irritava com a correria dos bisnetos pela casa. Em um domingo em família, ele pediu para sua esposa pegar sua bengala no quarto e ela não o ouviu, pois estava na cozinha. Neste momento, o velho se levantou e começou a esbravejar com ela. Não demorou muito para ele começar a dizer que preferia morrer a continuar casado com ela. Chamou a morte diversas vezes, dizendo que “a maldita” podia levá-lo naquele momento, já que ele vivia rodeado de gente burra e incompetente.

Um dia, meu avô me contou que ele esbravejou tanto que chegou a levantar a mão para a esposa. Ficou tão irritado que quase a agrediu. Novamente, disse que, se a morte não viesse buscá-lo logo, ele mesmo iria “dar um jeito”. Na mesma noite, segundo contou meu avô, o velho acordou gritando no quarto, dizendo que um cachorro enorme havia entrado na casa. Sua esposa acendeu todas as luzes e ambos procuraram o animal por toda parte. Meu avô diz se lembrar que o pai não deixou nenhum dos seus sete filhos saírem do quarto, até que encontrassem o animal. Ninguém encontrou nada.
O velho afirmou com tanta clareza que viu o cachorro e contou que o animal entrou pela porta do quarto e rosnou para ele, mostrando os dentes afiados.

Quando foram tentar dormir e apagaram as luzes, lá estava o cachorro, em pé, com os olhos vermelhos, encarando-o de cima do guarda-roupa. O velho soltou um grito tão alto e medonho, que as crianças mais novas, irmãs do meu avô, começaram a chorar de pavor e juraram que ele quase chorou também, tamanho seu horror.

Meu avô conta que o pai só conseguiu dormir no outro dia, na base de calmantes.
Depois daquela noite, coincidentemente ou não, uma série de mortes aconteceram na família. A esposa adoeceu, ficando com a coluna travada, sem comer, morrendo muito magra no hospital. O filho mais novo se envolveu em um acidente enquanto andava de bicicleta e morreu após treze dias no hospital. Meu bisavô também chegou a ficar doente e teve que amputar uma das pernas, após a piora de uma diabetes que ele nem sabia que tinha. Porém, não morreu. O meu próprio avô, que me contou essa história, chegou a tirar uma foto com o pai moribundo no hospital, mas acabou morrendo antes dele, de câncer.

Eu me lembro que, anos depois de ouvir essa história, eu já adulto, fui visitar meu bisavô em sua casa. Uma moça que cuidava dele, pediu para eu ficar com ele, enquanto ela ia à farmácia, comprar remédios. Quando entrei em seu quarto, o vi deitado na cama, respirando fundo, muito debilitado. Fui pedir sua benção e, no momento em que me aproximei de seu corpo magro, ele abriu os olhos e puxou minhas mãos, pedindo-me algo que nunca vou esquecer:

- Daniel, tira esse maldito cão daqui, senão ele me leva...

Eu me arrepiei todo, ainda mais pelo tom de sua voz que sussurrava em meus ouvidos. Lembrei-me da história que meu avô me contava e, mesmo com medo, preferi achar que ele estava delirando. Olhei para o guarda-roupa, para tentar ver o tal cachorro, mas no mesmo momento, me assustei com a moça, abrindo a porta do quarto, segurando um saco com remédios. Gentilmente, ela pediu-me para sair, pois ele precisava descansar e ser medicado. No meu interior, fiz uma oração para o meu bisavô e quando saí de lá, eu juro que ouvi três latidos vindos de dentro do quarto. No outro dia, chegou a notícia de que meu bisavô havia falecido.


Conto de Daniel Pires.